Carlos Alberto Figueiredo da Silva
Carlos Figueiredo.org
por Carlos Alberto Figueiredo da Silva
Caso Tinga

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Tinga se mostrou muito superior às ofensas, mesmo no calor do acontecimento. De fato, ele é | Foto: Divulgação/CEC
O Cruzeiro jogou mal e perdeu na estreia pela Libertadores. Fora de casa, levou a virada do fraco Real Garcilaso. Errou mais passes que o aceitável para um time profissional, num campo e estádio inimagináveis para a prática do futebol. Nada disso, entretanto, importa. A derrota faz parte do jogo. O racismo, não! Mas, não foi o que vimos no Peru, onde o volante cruzeirense Tinga foi alvo de manifestações das mais repudiáveis que o ser humano pode produzir.

Bastava Tinga beliscar a bola para vaias e sons que imitavam macacos ecoarem por todo o Estádio Huancayo. Não foram manifestações isoladas. Eram urros constantes de um preconceito arraigado, infame e, pior, globalizado. O episódio, entretanto, nada tem de novo. Casos como o de Grafite e DesábatoMáxi Lopes e Elicarlos, sem falar nos acontecimentos no Velho Mundo são a prova de que o racismo no futebol não é feito de fatos isolados. O próprio Tinga é vítima reincidente. Em 2005, quando atuava pelo Internacional, foi humilhado pela torcida do Juventude em um jogo do Campeonato Brasileiro.

A CBF nada faz. A Conmebol, menos ainda. Mas os clubes, especialmente o Cruzeiro no caso Tinga, poderiam fazer. Os sons de macaco ensurdeceram os representantes cruzeirenses no estádio, que deixaram o jogo transcorrer como se nada estivesse acontecendo. O árbitro da partida —que deveria ter cumprido a regra espontaneamente, não só por profissionalismo, mas em respeito a cor da própria pele— hora nenhuma foi pressionado a paralisar a partida. Até na súmula passou em branco. Nem mesmo o delegado do jogo reagiu.

É comum dirigentes de clubes, de instituições e representantes da mais alta cúpula do futebol apoiarem campanhas contra o racismo, vestirem camisas, estenderem faixas. Dilma se manifesta, Blater repudia o episódio em nome da Fifa, presidentes de clubes (até o do maior rival) se solidarizam, até mudar a cor do escudo a CBF mudou. Efetivamente, não agem. Nem mesmo reagem.

Paralisar a partida era uma atitude de respeito não só ao próprio Tinga, mas aos outros jogadores negros do grupo, aos milhares de torcedores que assistiam ao jogo, a uma nação inteira que se sentiu hostilizada pela imbecilidade de parte de um povo que, por ironia, tem um negro como maior ídolo da história de seu futebol. Faltou coragem!

O mais triste é perceber que o pensamento de muitos é, no mínimo, apático e complacente: “sair de campo de nada adiantaria, o time ainda perderia os pontos e correria riscos de sofrer punições da Conmebol”. Enquanto três pontos valerem mais que o respeito ao ser humano a situação continuará exatamente como está. 

#FechadocomoTinga

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Bem, vamos à opinião que realmente interessa nesse post. O doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho e autor do livro “Racismo no Futebol”, Carlos Alberto Figueiredo, respondeu às questões do #DiadeJogo sobre o assunto. Leia!

Mário Filho, em seu livro "O negro no Futebol Brasileiro", de 1947, já falava sobre as contribuições dos negros para a formação da identidade do esporte brasileiro. Na reedição da obra, em 1964, as análises sobre a derrota da seleção na Copa de 1950 chamavam a atenção para a culpa que recaiu, especialmente, em Barbosa, Bigode e Juvenal, os três negros do grupo. Quase 70 anos depois, cá estamos nós tentando encontrar soluções para o mesmo problema. Porque evoluímos tão pouco no combate ao racismo no futebol?


O que estamos a presenciar são ecos do racismo. Este fenômeno por vezes se apresenta de forma sutil, escondido, camuflado; ou, então, de forma explícita. Diante de um ato racista tão explícito, como foi o que sucedeu ao Tinga, no jogo do Cruzeiro com o Real Garcilaso, tendemos, num primeiro momento, a acreditar que está ocorrendo um retrocesso civilizatório. Mas, duas problematizações devem ser realizadas. A primeira refere-se à questão do racismo não percebido, sutil, que está na nossa cara e não percebemos; a segunda refere-se aos atos visíveis e que provocam a indignação da sociedade.

Prof. Carlos Alberto Figueiredo | Foto: arquivo pessoal
No primeiro caso, do racismo sutil, de fato, temos muitas dificuldades até mesmo de defendermos a existência do racismo. No segundo caso, muitas ações têm sido realizadas para combater essa violência. No Brasil, temos legislações específicas que tipificam o racismo. Existem problemas? Sim, muitas vezes os atos são enquadrados como injúria racial e não como racismo. A FIFA também avançou um pouco neste sentido prevendo punições para atos racistas no futebol.

Penso que não estamos regredindo. A mídia atualmente tem se posicionado de forma contundente contra o racismo. Se observarmos outros períodos, a mídia reproduzia, de forma inconsciente, o racismo escondido na sociedade. As redes sociais são outra força no combate ao racismo. Entretanto, ao exacerbarmos nessas redes a defesa das vítimas dessa violência, não podemos cair no erro de atacarmos o outro, culminando com um nacionalismo xenofóbico e racista.

Ainda hoje muito se questiona sobre o fato de o Brasil ser ou não um país racista. Parte da sociedade não reconhece o preconceito como um problema latente por sermos um país miscigenado. As pesquisam que traçam o mapa da nossa sociedade, entretanto, estão aí para mostrar o contrário. Para além de casos explícitos de discriminação como o do volante Tinga, o racismo no futebol também se apresenta de forma velada?

A tese que defendo é a existência de um racismo para dentro e outro para fora. O racismo para dentro elege bodes expiatórios para, de certa forma, aplacar a ira da multidão. Temos dificuldade de assumir nossos erros, nossos fracassos. A saída que muitas vezes utilizamos é colocar a culpa no outro. No caso do futebol, principalmente nas derrotas, tendemos a culpar alguém. Quando o culpado é um jogador negro as alegorias utilizadas são metáforas discriminatórias que ferem não só o atleta, mas, principalmente, o ser humano. Isto é atenuado quando a culpa é atribuída a um jogador branco. Se formos observar o mercado de trabalho de treinador de futebol, veremos que são poucos os treinadores negros. Essa posição de comando parece ser destinada prioritariamente aos brancos. O técnico Lula Pereira já declarou publicamente as discriminações que sofre cotidianamente, e as dificuldades para se empregar como treinador de futebol.

O Brasil tem na história inúmeros jogadores negros de relevância incomparável. Somente citar Leônidas da Silva e Pelé já bastaria. Contudo, como você mesmo citou, ainda existem posições no mundo do futebol em que as barreiras não foram quebradas e os negros continuam com representações bastante tímidas, como os cargos de técnico, dirigentes de clubes e federações.  Com as políticas de combate ao racismo que temos, qual é a expectativa de que esse panorama se altere num futuro próximo?

De Moacyr Barbosa a Joaquim Barbosa, de Edson Arantes do Nascimento (Pelé) a Paulo Cesar do Nascimento (Tinga) vemos como os ecos do racismo se perpetuam. Teremos num futuro próximo alterações substantivas? Para ser coerente com a proposta do início deste texto: sim!, teremos mudanças profundas na sociedade no sentido de um superavit civilizatório. O déficit momentâneo será superado pela consciência humana, planetária, social que estamos a criar com a ajuda das redes sociais.